Cáceres, 27 de novembro de 2024 - 12:46

A maria que habita em mim

 A Maria que habita em mim foi assassinada no dia 17 de novembro de 1973, há exatos 50 anos, três meses e 20 dias, numa tarde quente de verão. Ela era uma mulher à frente de seu tempo, que saiu do interior de Minas Gerais, onde morava num sítio, atravessou o país e veio morar no interior de Mato Grosso, com o esposo e 12 filhos – o mais velho com 17 anos, e eu, a mais nova, com um ano, ainda sendo amamentada.
O que a Maria de 1973 tem a ver com a mulher de 2024? Muita coisa.

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 Ela era uma pessoa altiva, trabalhadora, que sempre lutou muito com as adversidades da vida, em especial com os problemas de saúde; por esse motivo, viajava para a capital Belo Horizonte, onde nasci. Ficava dias na capital para tratamento de saúde, sem o esposo e os filhos, tendo como companhia a dor: física e da ausência.
 Foi assassinada aos 40 anos de idade, vítima de uma psicopata que, à época, não foi assim considerada, tampouco presa ou julgada – simplesmente desapareceu igual poeira na ventania, causando dor e sofrimento.
Maria teve uma passagem intensa, meteórica, pela vida, mas o suficiente para deixar marcas e muitas memórias impressas naqueles e naquelas que a conheceram e tiveram o privilégio de conviver com ela.

 Gostava de festas e de dançar. Cada batizado de um filho era um evento a ser comemorado com a vizinhança e amigos. Cada festa de São João era marcada por muitas e variadas guloseimas mineiras, quentão, bandeirolas, fogueira, forró tocado na sanfona e a tradicional reza de São João. Ela era devota de São João, católica, uma cristã de muita fé.

 Ela gostava de viver, amava os filhos e o esposo, apreciava moda, aquela que via em Belo Horizonte – MG, na televisão, gostava de usar salto, mandava fazer suas roupas no alfaiate e, quando a roupa lhe era entregue, bordava as peças e fazia a sua moda particular, era elegante, gostava de usar terno e vestidos de linho, delicadamente bordados com suas mãos pequenas e afetuosas, cada um mais lindo que o outro (eu conheci um deles), ela também era costureira.

 Em 2024, ela faria 94 anos. Como ela seria aos 94 anos? Às vezes, fico pensando como ela seria aos 41, 42, 43…94, e não consigo imaginar porque não me foi permitido conhecê-la, conviver com ela, criar memórias do seu rosto, do seu cheiro, do seu andar, das suas broncas, do seu colo, do seu carinho, da sua generosidade, da sua meiguice e, sobretudo, do seu amor.

 Imagino como teria sido bom crescer ao lado dela, receber os seus ensinamentos e poder cuidar dela, levá-la para uma atividade física, um passeio, num restaurante, tomar um sorvete, coisas simples; protegê-la na velhice com todos os cuidados que ela precisasse, como fizemos com o nosso pai. Seria bom, muito bom.

 Mas a Maria habita em mim com as memórias que eu, espertamente, colhi no decorrer da minha vida. Sei muita coisa sobre ela, inclusive, que era um ser humano incrível, que não fez nenhum movimento brusco para contribuir com o desfecho trágico da sua existência, que, assim como tinha intimidade com o verbo lutar, se aliou a ele na hora final, lutou pela sua vida, mas foi vencida pelo ódio gratuito de alguém que não conhecia, mas que carregava a morte nos olhos e no coração.

 Então, às vezes, fico pensando em quantas Marias que se foram, vítimas da violência gratuita de “gente” ruim. Marias que deixaram seus filhos, sem ter tido tempo de construir memórias; filhos que, às vezes, nem tiveram a sorte de, como eu, contar com um José – o amor e a generosidade em pessoa –, porque em incontáveis casos são os pais que colocam fim na vida dessas Marias.

 Neste mês de março, mês em que se comemora o dia internacional da mulher, é importante fazermos uma reflexão, ainda que sem a profundidade teórica que o tema merece, sobre o papel da mulher na sociedade: qual a importância de sua existência? Qual a importância de sua presença dentro de uma família? Qual a importância de sua presença física para os seus filhos? Qual a importância da mulher para a educação? Para a construção do conhecimento? Para a ciência? Qual a sua contribuição para o mercado de trabalho? Para o desenvolvimento pluridimensional da sociedade? Para o crescimento econômico do país? Para a política? Qual a importância da mulher nos espaços de poder e de decisão? Será que conseguiremos responder esses questionamentos, ainda que silenciosamente?

 São reflexões necessárias, que devem ser feitas por todas as pessoas que pensam e querem uma sociedade mais fraterna, humana, solidária, com equidade de gênero e respeito às diferenças e à dignidade humana.
Quantas mulheres foram assassinadas em Cáceres, em Mato Grosso, no Brasil? Assassinadas só por serem quem são: mulheres!

 Precisamos urgentemente despertar do pesadelo da indiferença, da covardia, do silêncio conivente, e lutar pela vida, com responsabilidade e dignidade.

 É preciso, sobretudo, que a luta se dê pela via do amor, e não do ódio! Pela via da paz, e não da guerra! Pela via do respeito às regras do jogo, para que não seja motivo de dor para quem precisa de cuidado, do cuidado amoroso de uma mãe e de um pai!

 Pelo direito à vida de todas as Marias, sejam elas quem forem!

 Pelo direito das filhas e filhos conhecerem suas mães e com elas crescerem, construírem memórias afetivas, aprendizados e sobretudo o respeito e o amor pela vida das outras pessoas.

 E, como diz o cantor, compositor e escritor Chico César, “Deus nos proteja da maldade de gente boa e da bondade da pessoa ruim”. 
 
 Maria Cassimira de Oliveira, minha mãe!!
 
 Por: Mireni de Oliveira Costa Silva/Oficial de Justiça, Mestre e Doutorando em Direito pela UNIMAR  – Universidade de Marília – SP
 

 

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